- A Paz Através de Uma Tigela de Chá -

O KIMONO AMA O BRASIL: Calor no Olhar a Um País Distante

“Prepare uma deliciosa tigela de chá”
Chawa fuku no yoki yôni tate

“Disponha o carvão de modo a aquecer a água”
Sumi wa yu no waku yôni oki

“No verão, sugerir o frescor; no inverno, o calor”
Natsu wa suzushiku fuyu wa atatakani

 

A cultura do chadô, o caminho do chá, é um fruto fomentado pelo ambiente e atmosfera do Japão.  Dentre os elementos que contribuem para constituir esse mundo da estética japonesa, destaca-se a vestimenta tradicional japonesa, o kimono.  O chá foi introduzido no Japão a partir da China da dinastia Tang (618–907); enquanto que o  kimono alcançou seu auge no decorrer do período Heian (794–1185).  Antes disso, ainda está evidente a influência da cultura têxtil chinesa, dos períodos Sui e Tang.  Isso pode ser observado em coleções históricas como as do Repositório Shôsô-in, no templo Tôdai, em Nara, datada do século VIII; ou na do templo Hôryû-ji, na mesma cidade, e ainda mais antiga.  A partir do período Heian, as artes da tecelagem e tingimento desenvolvem um estilo próprio japonês, que se expande sobretudo entre a aristocracia. No século XVII, essas artes começam a se difundir; antes limitadas às classes aristocrática e militar (samurai), agora alcançam também as classes burguesa e camponesa. Nisto desenvolvem-se vários estilos, como as luxuriosas vestimentas do teatro Noh, ou a técnica Yûzen de pintura em tecido, que cria padrões pictóricos multicoloridos.  Do século XVI em diante, a Europa também passa a receber influências de artes japonesas, como as gravuras ukiyo-e; e assim difundiu-se a palavra kimono [grafada no português, por exemplo, como “quimono”]Atualmente, a palavra é muito comum nos países ocidentais.   

 

SOBRE A PALAVRA KIMONO

Essa palavra, incidentalmente, tem uma composição muito simples: forma-se a partir do verbo kiru 着る, “vestir”, modificando o substantivo mono 物, “coisa”.  Ou seja, kimono é literalmente uma “coisa de vestir”.

Em português e em outras línguas ocidentais, a palavra denota a roupa tradicional japonesa.  No Japão, porém, ela tornou-se mais geral.  A partir do período Meiji (1868), são introduzidas vestimentas do Ocidente, que passam a ser chamadas de, literalmente, “roupas ocidentais” (yôfuku 洋服).  Por isso, a roupa ao estilo nativo, que sempre havia sido usada, passou a ser chamada de wafuku 和服, “roupa japonesa” [onde “Wa” é um nome antigo do Japão].  Já a palavra kimono passou a ser ambígua, denotando qualquer tipo de “coisa de vestir”.

Hoje em dia, contudo, retomou-se o hábito de usar no cotidiano o termo kimono para se referir à roupa japonesa (wafuku), o que representa um retorno ao seu sentido original.

Ao fazer uma retrospectiva do kimono, vemos que essa palavra possui ainda outra complicação. Estamos falando da classificação de um kimono, que pode ser feita a partir de critérios distintos, tais como sua técnica de tecelagem, de tingimento, categoria de qualidade, tipo de tecido etc. Por exemplo, existem expressões como:

  • Kimono de tecido estilo Oshima (técnica de tecelagem) – Oshima no kimono 大島の着物.
  • Kimono de tecido tingido no estilo Yûzen – Yûzen no kimono 友禅の着物.
  • Kimono de tecido de cor lisa – iromuji no kimono 色無地の着物.
  • Kimono de tecido de gaze de seda estilo Ro ro no kimono 絽の着物.

 

Amarre decorativo com obijime (cordão de seda usado para manter firme o obi) 

O kimono é um traje étnico tradicional que se desenvolveu ao longo de muitos séculos; porém, ele hoje tem se tornado uma presença um tanto remota, distante da vida cotidiana. No passado, um kimono era um bem valioso, transmitido por gerações – de mãe para filha, de filha para neta; mas também essa transmissão tem se tornado incerta. A vestimenta típica encontra-se em uma situação desoladora.  Seria isso devido a uma alienação causada por simples desconhecimento? Mas que tipo de desconhecimento? Um deles certamente é devido à quebra na tradição da técnica de se vestir (kitsuke), cuja educação tornou-se deficiente. Talvez outra fonte de insegurança seja o desconhecimento do que se deve vestir em cada ocasião.  Pensando nisso, consideremos as várias categorias de kimono que existem.

 

SOME NO KIMONO 染めの着物 – KIMONO TINGIDO

ORI NO KIMONO 織りの着物 – KIMONO DE TECELAGEM

O kimono divide-se em dois grandes grupos: o “kimono tingido” e “kimono de tecelagem”.

Para o kimono tingido, emprega-se peças de tecido (tanmono) branco, produzidos diretamente de linha branca.  Depois de pronto, o tecido é tingido através de uma de diversas técnicas tradicionais, todas com características únicas, tais como: o yûzen-zome, seda impressa pintada à mão; o aigata-zome, estêncil em anil; bingata-zome, padronagem colorida de Okinawa, produzida por tingimento de reserva (o resist dyeing), etc.  Ainda na categoria do tanmono branco, classificam-se técnicas de tecelagem de diferentes texturas, tais como o chirimen (crepe de seda), o rinzu (tecido adamascado), ou o habutae (tecido de seda fino, macio, liso e brilhante).

A segunda categoria é o kimono de tecelagem.  O material é tecido com fios já tingidos, criando padrões no próprio processo de tecelagem.  Existem inúmeras técnicas de tecelagem distintas, tais como o tsumugi (tecido de seda áspera e irregular, de aparente rusticidade), o kasuri (tecido com a linha tingida antes da tecelagem, de forma a criar padrões de aparência pincelada); o omeshi (crepe ou chirimen de alto padrão, tingido na fibra), etc.

O ranqueamento de qualidade do kimono depende da técnica e da escala de produção. A classificação do obi, a faixa de amarrar, também; porém, os critérios são opostos. No caso do obi, os de tecelagem (ori-obi) são considerados de categoria superior aos tingidos (some-obi). Como no chadô se respeita a qualidade, pra um kimono tingido, usaremos um obi de tecelagem.

友禅染Yûzen-zome友禅染Yûzen-zome琉球紅型染Rikyû bingata-zome琉球紅型染Rikyû bingata-zome
紬織Tsumugi ori紬織
Tsumugi ori
絣織Kasuri ori
© norio nakayama
 

Um outro critério para a escolha do kimono também está presente na moda ocidental.  Trata-se do cuidado em selecionar vestimentas adequadas à estação.  Por vezes, até nos adiantamos ao clima, a fim de desfrutar o estilo da temporada que se aproxima.  No mundo do kimono ocorre o mesmo; porém, sua sazonalidade é baseada em fundamentos distintos.

No Japão, a temporada de calor vai de junho a setembro, e durante esse período usa-se o kimono sem forro, chamado hitoe. No período mais forte do verão, de julho a agosto, usa-se o kimono transparente de gaze de seda,  ou usumono (literalmente “coisa leve”). O tecido de gaze pode ser o ro, mais formal, ou o sha, casual. De outubro até maio faz frio, por isso o kimono preferido é o awase, com forro. 

SÍNTESE DA BELEZA DA TÉCNICA DO KIMONO

 

PADRÕES DECORATIVOS DO KIMONO

Há um elemento ainda mais interessante na cultura do kimono: a padronagem. Conquanto seja necessário estudar os fundamentos, os multivariados padrões vêm há muito inspirando e deleitando com seus diversos significados, expressando em imagens o deslumbramento pela natureza, e de fato com toda a miríade da criação.  Apenas pela escolha de roupa, sem precisar de palavras, é possível expressar sinceramente  romantismo, esperança, felicidade, humor, celebração, votos de longevidade – tudo de acordo com a situação. Por exemplo, o pinheiro oriental (matsu) é uma planta perene, admirada por não mudar de cor, permanecendo ereta e verdejante mesmo sob a neve; tradicionalmente, diz-se que vive por mil anos, e por isso é considerada uma árvore auspiciosa, um símbolo de longevidade.  O padrão de pinheiros simples existe já desde o período Heian. Posteriormente surgem diversos designs distintos, tais como o Kôrin-matsu, no estilo do famoso pintor Ôgata Kôrin ; o Velho Pinheiro ou Oimatsu, a majestosa árvore que vemos no palco do teatro Noh; os Ramos de Pinheiro, Matsugae, pintados com uma técnica distintiva; o Jovem Pinheiro, Wakamatsu, disposto em forma de diamante; o Matsukui-zuru, desenho do pássaro grou voando com um pequeno ramo de pinheiro em sua boca, e assim por diante.  De forma semelhante, existem inúmeros padrões como o bambu, ameixeira, cerejeira, carpa, leque, flor de paulownia (kiri), fênix chinesa (hô-ô), rodas floridas (hanaguruma), carruagem nobre  (goshoguruma) etc.  A padronagem tornou-se o grande charme do kimono, pois seu estudo nunca se esgota.

Kôrinmatsu - pinheiro no estilo Kôrin

Kôrinmatsu – pinheiro no estilo Kôrin

Oimatsu – Velho Pinheiro

Oimatsu – Velho Pinheiro

Wakamatsu – Jovem Pinheiro

Wakamatsu – Jovem Pinheiro

Matsu - pinheiro oriental

Matsu – pinheiro oriental

Matsu - pinheiro oriental

Matsu – pinheiro oriental

 

OS FIOS DO KIMONO – SUA RELAÇÃO COM O BRASIL

Até agora tratamos do kimono enquanto vestimenta.  Mudemos de enfoque, considerando agora o fio que é a matéria-prima do tecido que compõe o kimono.  Estudando sua origem, encontramos uma inesperada e profunda conexão entre o kimono e o Brasil.

Em português, chama-se “fiar” à técnica que forma o fio ou linha a partir de fibras, que podem ser de inúmeros tipos, vegetais, animais [ou sintéticas]. Na cultura do kimono, existem duas palavras diferentes: umu 績む refere-se ao fiar das fibras vegetais, de caules e hastes do cânhamo, por exemplo; enquanto que tsumugu 紡ぐ refere-se ao processo de fiar o casulo do bicho da seda.  O kimono usa o fio da seda, tsumugu-ito. No período Edo (1603–1868), o fio de seda sozinho perfazia 86% das exportações do Japão – uma demanda que indica sua qualidade. Mas devido aos conflitos na China, ao impacto da doença do bicho da seda difundida na Franca e Itália, e à ênfase na produção em quantidade, a qualidade começou a cair.   Alarmado com a queda na reputação, o governo japonês projeta uma fábrica estatal de produção de fio de seda; e, em 1872, sob orientação francesa, foi erigida a Fábrica de Seda de Tomioka (Tomioka Seishijô) – a mais velha do Japão, que em 2014, tornou-se Patrimônio Mundial da Unesco. Por volta de 1877, o fio de seda japonês era renomado o suficiente para ser requisitado inclusive por Lyon, na França, a capital dos tecidos de luxo.

Dessa forma, quando o Japão implementou o plano de emigração, foi muito natural que, dentre as aspirações dos imigrantes japoneses no Brasil, estivesse incluso o sonho da produção de seda.  O volume de produção de seda crua no Brasil era alto; em 1909, chegou a ser o segundo do mundo, perdendo apenas para a China da dinastia Qing . Infelizmente, porém, a Primeira Guerra estourou em 1914, trazendo uma época de dificuldades para os japoneses, tratados como membros de uma nação inimiga. Em meio a tais adversidades, os imigrantes japoneses de Bastos criam a Fiação de Seda Bratac Ltda, em 1930, com o objetivo de modernizar a indústria no Brasil. Com isso, a Bratac chegou a alcançar 80% do volume total da produção brasileira. Em 1998, a produção combinada da China, Índia e Brasil alcançava 90% do total mundial; em seguida vinha o Uzbequistão, e em quinto lugar o Japão.

Assim, a produção de tecido de kimono no Japão hoje em dia depende de fios importados. Além disso, a única produtora capaz de fornecer o fio com a qualidade adequada é a Bratac, que mantém o processo de fiação herdado da tradição japonesa. Com esse fio, garante-se que o tingimento e tecelagem tradicionais terão os mesmos resultados que sempre tiveram.  Pode-se dizer que, para os artesãos que trabalham com kimono, o fio da seda é absolutamente essencial para ter controle sobre o resultado final. A demanda do kimono do Japão porém é baixa, hoje em dia, e para superar isso a Bratac tem investido no progresso rápido, não só ampliando a fábrica, mas também pesquisando a criação de bichos-da-seda; a amoreira, que é seu alimento; o controle da temperatura dos casulos, etc.  A conhecida marca multinacional de alta-costura Hèrmes, sediada na França, também reconhece a qualidade do fio da Bratac, que constitui a maioria de seus produtos. O Brasil pode ser um país distante do Japão, mas sinto palpavelmente sua profunda conexão com o futuro do kimono.

 

Toshiko Yoshizumi
Voluntária Sênior da JICA, na área de Cultura, por período de curta duração
Pós-graduação no Instituto Técnico de Kyoto
Professora de ikebana, praticante de koto
Designer residencial, atualmente trabalhando na área de tecidos

Junho de 2016